Umas das palavras mais atuais é “empoderamento”. Falamos de empoderamento racial, de orientação sexual e de identidade de gênero, mas vou falar de um outro agora, do empoderamento das pessoas com deficiência.
Sim, deficientes, e não pessoas com necessidades especiais, excepcionais, anjos azuis, ou qualquer outro eufemismo que a sociedade gosta usar para descrevê-los.
Eu mesma, confesso, tenho muita dificuldade em dizer que minha filha tem uma deficiência, deficiência intelectual, de causa genética. Para mim, é muito mais confortável falar que “tenho uma filha com necessidades especiais”. Isso é menos duro para o meu coração, mas é também uma barreira para o enfrentamento e apropriação dessa condição, que é dela, mas é tão minha. Ser deficiente intelectual não é ter falta de inteligência, é ter um outro jeito de aprender, em um outro ritmo.
Uma pessoa deficiente visual aprende a enxergar com os outros sentidos. Uma pessoa sem membros superiores aprende a usar os pés para desempenhar funções de maneira espetacular. As pessoas com deficiência intelectual também têm que desenvolver suas estratégias para se adaptarem ao mundo, e, quando essa chance lhes é dada, conseguem surpreender.
O que os grupos de pessoas com deficiências buscam é o reconhecimento de suas particularidades tais como são, sem maquiagem. Aceitação, portanto, empoderamento. Alguns deles, como os de Síndrome de Down, que são muito organizados, têm feito muitas campanhas para mostrar que merecem respeito, oportunidades e reconhecimento. Tal como são.
Daí você diz que concorda com tudo isso, sim, todos nós somos diferentes e merecemos respeito. Porém, na prática, essa ideia é esvaziada pela percepção que todos nós temos da tal “normalidade”. O que define você e todos nós moralmente são nossas ideias do que é normal, então, normal é casamento entre homens e mulheres, normal é menina usar rosa, normal é deficiente na escola especial, normal é deficiente ser visto como neutro (“café com leite”, sabe?), normal é deficiente ser para sempre dependente, normal é entrar em um escritório e não encontrar pessoas com qualquer tipo de deficiência. Muitas pessoas habilidosas têm enorme dificuldade de se colocarem no mercado de trabalho, porque têm alguma deficiência física.
Não sabemos lidar com pessoas autistas, por exemplo, não sabemos como agir com uma pessoa deficiente intelectual, ou uma pessoa com transtornos psicológicos, ou com deficiência visual. Ficamos sem graça, não sabemos o que dizer e como ensinar os nossos filhos como agir. As ruas não permitem que pessoas com restrição de mobilidade possam circular livremente. A cidade e a sociedade são completamente hostis com todas essas pessoas.
Sabe por quê?
Porque, até pouco tempo, todas essas pessoas ficavam trancafiadas em casa, dentro de intuições, escondidas de todos nós. Mas daí você vai falar: “Nossa, mas isso foi muito tempo atrás! Hoje está tudo diferente!”.
Você sabia que, em 1911, nos EUA, foi assinada uma lei que dizia, basicamente, que todas as pessoas diferentes não podiam circular livremente pelas ruas? Isso era amoral. Uma pessoa com Síndrome de Down estaria “ofendendo”, digamos assim, as pessoas normais se ousasse andar pelas ruas e tentasse ter uma vida normal.
Então, vc vai dizer: “Ah, mas isso era nos EUA, só podia ser lá!”. Não se engane, essa era a mentalidade das pessoas na época, provavelmente, no mundo todo, aqui, inclusive. Essa lei só foi revogada em 1973, ou seja, as pessoas foram criadas e educadas dentro de uma sociedade que carregava fortemente esses ideais, essas pessoas, que hoje são nossos avós e pais, nos educaram, e nós, por sua vez, estamos aqui educando as novas gerações.
Naquela época, as pessoas eram chamadas de mongoloides e retardadas, sendo que essa última ainda consta no vocabulário técnico médico, ou seja, segundo laudo dado por especialista, minha filha tem retardo mental, sim, retardo mental (existe até um CID para isso).
Eu, hoje, me vejo no dever de me empoderar do “ser” deficiente, sim, empoderamento da deficiência. É meu dever estar mais do que bem resolvida e empoderada dessa condição humana, para, então, ensinar para minha filha que ela é deficiente e não há qualquer vergonha nisso. Que ela tem algumas necessidades diferentes de muitas crianças da idade dela, mas que, ainda assim, ela também tem as mesmas necessidades delas. Precisa de amor, aprender, ter acesso à escola, precisa de amigos, brincar, de frequentar os parques e parquinhos e de todas as outras coisas que as crianças dessa idade precisam.
Então, vamos nos esforçar um pouco mais para o diálogo, para ouvir o que essas pessoas têm para nos mostrar.
Meu sonho é ver pessoas com as mais diferentes deficiências ocupando a cidade. Aliás, outro tema do momento, “ocupação da cidade”. Quantas pessoas com deficiências você encontra no seu dia-a-dia? Na padaria, no banco, na academia, no cinema, pegando metrô? Sonho com o dia em que minha filha vai se despedir de mim na porta de casa e vai sozinha para o ponto de ônibus, assim como deficientes visuais, cadeirantes e autistas. Uma cidade mais acessível e inclusiva. Bem utópico, não? Mas, sem isso, como vamos iniciar o processo de desfazer o que foi feito até hoje?
Quer saber mais sobre esse assunto?
“A dificuldade de diagnosticar a deficiência mental tem levado a uma série de revisões do seu conceito. A medida do coeficiente de inteligência (QI), por exemplo, foi utilizada durante muitos anos como parâmetro de definição dos casos. O próprio CID 10 (Código Internacional de Doenças, desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde), ao especificar o Retardo Mental (F70-79), propõe uma definição ainda baseada no coeficiente de inteligência, classificando-o entre leve, moderado e profundo, conforme o comprometimento. Também inclui vários outros sintomas de manifestações dessa deficiência, como: a […] ,dificuldade do aprendizado e comprometimento do comportamento, o que coincide com outros diagnósticos de áreas diferentes.
O diagnóstico da deficiência mental não se esclarece por supostas categorias e tipos de inteligência. Teorias psicológicas desenvolvimentistas, como as de caráter sociológico, antropológico têm posições assumidas diante da deficiência mental, mas ainda assim não se conseguiu fechar um conceito único que dê conta dessa intrincada condição. A grande dificuldade de conceituar essa deficiência trouxe conseqüências indeléveis na maneira de lidarmos com ela e com quem a possui. O medo da diferença e do desconhecido é responsável, em grande parte, pela discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência, mas principalmente por aquelas com deficiência mental.”
(Atendimento Educacional Especializado em Deficiência Mental. SEESP / SEED / MEC Brasília/DF – 2007)
“Há tempos que defeituoso é um adjetivo considerado muito carregado pelo discurso liberal, mas os termos médicos que o substituíram — “doença”, “síndrome”, “condição” — podem ser quase tão pejorativos à sua maneira discreta. Muitas vezes usamos o termo “doença” para depreciar um modo de ser, e “identidade” para validar essa mesma maneira de ser. Trata-se de uma falsa dicotomia. […] Muitas condições são tanto doença como identidade, mas só podemos ver uma se obscurecermos a outra. A política da identidade refuta a ideia de doença, enquanto a medicina ludibria a identidade. Ambas saem diminuídas com essa estreiteza.” (Solomon, pag. 15)
“ […] As sociedades pós-industriais criaram instituições benevolentes para os deficientes, que muitas vezes eram levados para longe de casa ao primeiro sinal de anomalia. Essa tendência desumanizante montou o cenário para a eugenia. Hitler matou mais de 270 mil pessoas com deficiência, sob o pretexto de que eram “travestis da forma e do espírito humanos”. A presunção de que a deficiência podia ser extirpada era corrente em todo o mundo. Leis que permitiam a esterilização involuntária e o aborto foram aprovadas na Finlândia, Dinamarca, Suíça e Japão, bem como em 25 estados norte-americanos. Em 1958, mais de 60 mil americanos já haviam sido castrados à força. Em 1911, Chicago aprovou uma lei que decretava: “Nenhuma pessoa que esteja doente, aleijada, mutilada ou de alguma forma deformada, de modo a ser um objeto de má aparência ou repugnante nas vias públicas ou outros locais públicos da cidade, deve neles se expor à visão pública”. Essa lei só foi revogada em 1973. […]
O movimento pelos direitos dos deficientes procura, no nível mais básico, encontrar um lugar para a diferença, em vez de apagá-la. Um dos seus sucessos mais marcantes é entender que os interesses dos filhos, dos pais e da sociedade não são necessariamente coincidentes, e que os filhos são os menos capazes de se defender. Muitas pessoas com profundas diferenças sustentam que mesmo asilos,hospitais e residências bem administrados são análogos ao tratamento dos afro-americanos submetidos às leis segregacionistas outrora vigentes nos estados sulistas americanos. […]
Apesar desses desafios persistentes, o movimento pelos direitos dos deficientes fez progressos notáveis. A Lei de Reabilitação de 1973, aprovada pelo Congresso americano contra o veto do presidente Nixon, proibiu a discriminação contra pessoas com deficiência em qualquer programa financiado pelo governo federal. […] Em 2009, na abertura dos Jogos Mundiais Olímpicos Especiais, o vice-presidente Joe Biden declarou que a defesa das necessidades especiais era um “movimento de direitos civis” e anunciou o novo cargo de assistente especial do presidente para a política relativa à deficiência. […]
O multiculturalismo rejeita a visão da década de 1950 de um mundo em que todos estão subordinados à americanidade uniforme, e opta por outra em que todos habitam suas próprias particularidades valiosas. Em sua obra clássica Estigma, Erving Goffman sustenta que a identidade se forma quando as pessoas se orgulham daquilo que as tornou marginal, possibilitando assim alcançar autenticidade pessoal e credibilidade política.” (Solomon, pag 41)
(Longe da Árvore: pais, filhos e a busca da identidade / Andrew Solomon. Companhia das Letras 2013)
*Meus agradecimentos especiais para Gabrielle Berton e Júlia Souto da Escola Estilo de Aprender, pela revisão do texto e pelo carinho!
Como não amar seu texto e dizer “muito obrigado” pela oportunidade que me deu em enxergar essa experiência pelos olhos de alguém que vive com uma criança deficiente. Realmente a sociedade prefere isolar os problemas ou mesmo fingir que não existem. Quantas pessoas são infelizes pq não conseguem lidar com os preconceitos dos outros, quantas crianças e adolescentes sofrem bullying todos os dias? O ser humano precisa aprender a viver e respeitar as diferenças. Esse sonho de ver o país e mesmo o mundo trabalhando juntos para superar as diferenças também é um sonho de muitas outras pessoas.
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Novas palavras para velhos significados, é a cultura frágil, desgastada, não recebe a devida atenção, se fosse assim tudo seria bem mais simples e compreendido pela maioria e não teria que ficar explicando.
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