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Sobre tamaralaiter

Sou formada em psicologia e fiz minha vida profissional no chão das escolas de Ed Infantil e Fundamental I, trabalhando com ensino de inglês para essas faixas etárias. São 20 anos me dedicando às práticas educacionais, entre cursos e especializações, para além do ensino de língua, enxergando as peculiaridades existentes nas relações e nos processos de aprendizado. Com o nascimento da Maitê, questões que já me chamavam atenção convivendo com crianças atípicas nas escolas, tomaram proporções gigantescas. Passei minha vida ensinando crianças a falarem uma segunda língua e agora tenho uma filha que não fala. Ironia ou não, muitas são as reflexões decorrentes dessa experiência de vida. Ser mãe da Maitê me colocou em um lugar no mundo que não posso negar. Sinto que tenho a obrigação de dar voz para uma causa, o mundo precisa ser um lugar mais acolhedor para as pessoas deficientes.

Do Mundo Antes da Pandemia

Uma das minhas maiores aflições nesse período de pandemia é o isolamento entre as crianças. Serão meses de experiências não vividas e risadas não compartilhadas.  O que se aprende nessa relação não pode ser simulada por nós adultos e cuidadores, mas para dar uma trégua ao coração, quero celebrar as amizades e as relações de afeto, dividindo duas riquezas de histórias vividas por nós em anos anteriores.

Na Banca

Voltando de um passeio, desses que a criança faz para acompanhar o adulto que tem que coisas para resolver na rua, Maitê prestou atenção em uma menina que brincava de panelinha dentro de uma banca de jornal. Ela quis parar imediatamente, curiosa, se aproximou e mostrou entusiasmo.

Começou ali uma intenção de interação, então a menina perguntou:

– Ela não fala?
– Não.
– Na minha sala tem duas crianças como ela.
– Como você acha que elas se parecem?
– Ela não tem uma síndrome?
– Tem.
– Então! Deixa ela aqui que eu sei brincar com ela.
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Na beira do mar

Na beira da água a Maitê se aproximou de um grupinho de meninas com idades entre 7 e 8 anos. Queria brincar. As meninas deixaram. Então, uma delas perguntou:

“Ela é especial?”

Eu fiz que sim.

Ela sorriu e chamou a Maitê para brincar. Quando a mãe se aproximou ela disse:

“Mãe, ela é igual ao Dani!”

Eu e a mãe conversamos muito tempo enquanto as meninas brincavam. Conversamos sobre inclusão e aceitação da deficiência de um filho. Contei sobre algumas das dificuldades que enfrento. Falamos sobre a importância da filha dela ter amigos com deficiência na escola e como isso faz toda a diferença para a vida das nossas meninas.

Por fim, falamos sobre nossas vidas, crise, maternidade, machismo e racismo. Ela contou que era açougueira e que convive com o machismo dessa profissão, é difícil assinarem carteira dela, preferem os homens.

Fomos embora na mesma hora, as meninas deram beijo, falaram tchau com carinho. E eu fui embora querendo brindar os encontros, os momentos, a simplicidade e a alegria.

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Minha filha não fala

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A Maitê tem apraxia da fala, ou seja, ela não consegue articular palavras. Ela ouve perfeitamente, compreende as informações recebidas, mas não consegue articular fala.

Apraxia é uma condição que, na maior parte do tempo, está associada à outras condições como Transtorno do Espectro do Autismo e síndromes genéticas como Down e outras. No caso da Maitê está associada a Síndrome de Kleefstra. Desde cedo sabíamos que ela teria dificuldades para falar, apraxia é muito comum nas pessoas dessa síndrome.

“Em linhas gerais, podemos dizer que a Apraxia de Fala na Infância é um grave distúrbio motor que afeta a habilidade da criança em produzir e sequencializar os sons da fala da forma que seria comum à sua idade. A criança com apraxia tem a ideia do que quer comunicar, mas seu cérebro falha ao planejar e programar a sequência de movimentos ou gestos motores da mandíbula, dos lábios e da língua para produzir sons e formar sílabas, palavras e frases.” (http://tismoo.us/cursos-e-eventos/a-sutil-diferenca-entre-o-autismo-e-a-apraxia-de-fala/)

Fico angustiada em pensar que quem não consegue se expressar e ser compreendido, pode desenvolver distúrbios mentais. Eu fico imaginando que seria como estar aprisionado dentro de si mesmo. Uma pessoa que não se expressa pode ficar isolada. Essa condição aumenta as chances das crianças ficarem nervosas, agitadas, agressivas e terem problemas como depressão e outros transtornos mais graves.

Por isso minha inquietude em relação a potencializar ao máximo a sua capacidade de expressão e, consequentemente, de interação com os outros.

O trabalho com fonoaudióloga inclui exercícios orofaciais e vocalizações para estimular a fala. Pode ser que a Maitê comece a falar a qualquer momento, iniciando com algumas palavras e seguir, progressivamente, até formar frases. Porém, enquanto isso não acontece, é preciso treinar seu cérebro a sequenciar ideias e a expressa-las.

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Imagem: Livro com alimentos e fotos na geladeira para a Maitê escolher o que quer comer.

Começamos usando algumas imagens para ela se comunicar dizendo o que queria comer, aos 2 anos, mas depois percebi que ela mexia as mãozinhas fazendo gestos aleatórios na tentativa de dizer algo. Foi quando descobri que existia um trabalho com comunicação alternativa de sinais, com a orientação de uma fonoaudióloga especializada.

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Ensinar sinais de maneira sistematizada foi um salto qualitativo na capacidade expressiva da Maitê. Hoje, com  5 anos, ela aprende quase que imediatamente qualquer sinal que a gente ensine, dentro de um contexto significativo. Aprendeu rapidinho os gestos “comer” e “bagunça”.

Sua capacidade cognitiva aumentou e, por causa disso, conseguimos intensificar o trabalho com a comunicação alternativa por via de imagens, com a ajuda de outra fonoaudióloga especializada. Esse sistema usa pranchas de comunicação com imagens.

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Atualmente ela deu outro salto, seu vocabulário tem aumentado exponencialmente e já conseguimos  “escrever” frases com essas imagens.

Ela começou a usar uma bolsinha com um cartão onde estão algumas imagens que informam necessidades básicas como, comer, banheiro e brincar. Esse cartão também possui imagens de lugares, sendo seus favoritos: ir para a rua, ir para a escola e para a padaria. A ideia é aumentar cada vez mais, acrescentando informações com as quais ela poderá trocar com seus amigos, professores, familiares, pessoas no elevador,  crianças no parquinho …

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Gasto bastante tempo da minha semana seguindo as orientações das fonoaudiólogas, fazendo minhas próprias pesquisas e sentindo as necessidades da Maitê, para produzir e melhorar cada vez mais os materiais que usamos. O objetivo é instrumentalizar a Maitê, dando força para ela buscar o outro e expressar mais do que apenas suas necessidades.

Eu não conhecia essa forma de comunicação e nunca conheci ninguém que usa pranchas com essa finalidade. O mesmo acontece com a grande maioria das pessoas com as quais a Maitê interage. Então, vejo que aqui está mais uma missão, criar junto com todos aqueles que nos cercam o hábito de usarmos a prancha para nos comunicarmos com ela.

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Imagem: Caderno que leva para contar na escola o que fez no final de semana.

Além disso, tenho percebido que o fato dela não falar deixa as pessoas com dúvida em relação ao que ela compreende. Hoje podemos dizer, tranquilamente, que  ela compreende praticamente tudo que falamos e está muito antenada nos acontecimentos ao seu redor. Uma das situações que me lembro ocorreu no hall do prédio, onde vizinhos falavam entre si sobre dar uma volta com o cachorro, a Maitê olhou para mim e fez o sinal de “dar uma volta”. Então, veja, até na conversa dos outros ela já está se intrometendo.

É como se a Maitê estivesse nos ensinando a quebrar certas normas: “Eu não falo, mas quem disse que a fala é a única forma de nos comunicarmos? Libertem-se dos padrões!” Sinto que a Maitê ainda vai mexer com os conceitos de muita gente sobre as formas de ser e estar nesse mundo.

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Imagem: Maitê preparando suco verde para o café da manhã no final de semana.

 

Special needs? Or disabled?

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*A versão desse texto em português está na postagem anterior.

A common term these days is “empowerment”.  We talk about empowerment for race, gender, and sexual orientation, but I’m going to consider yet another kind – empowerment for the disabled.

Disabled, yes, and not special needs, exceptional, blue-eyed, or any other euphemism society likes to use.

I confess that I do find it difficult to admit that my little girl has a intellectual disability, and that it’s genetic, named Kleefstra Syndrome. It’s much easier for me to say that “I have a special needs child.” That’s easier on my heart – but it’s also a barrier to facing and owning this condition, which is hers but mine as well.  Being mentally disabled doesn’t mean having no intelligence at all, but having a different way, a different rhythm of learning.

Someone with a visual disability learns to see through their other senses.  Someone with no arms learns to use their feet to function in amazing ways.  People with intellectual disabilities must also develop strategies to adapt to the world, and when they are given the chance to learn, they will surprise you.

What people with disabilities want is to be recognized for their individuality, just as they are, with no disguises – acceptance, and thus, empowerment. There are some very organized groups, such as those formed by people with Down Syndrome, who have held campaigns to show that such people deserve respect, opportunities, recognition – exactly as they are.

So you say you agree with all this and yes, we are all different and we all deserve respect.  However, in practice, this is counteracted by the idea that we all have of what is “normal”.  Your concept of “normal” is what defines you (and all of us) morally: it’s “normal” for marriage to be between a man and a woman; it’s “normal” for girls to wear pink; it’s “normal” to put disabled people in special schools keeping them apart from typical children, and for them to be forever dependent on others.  It’s “normal” to enter an office and not run into anybody with any kind of disability, and many competent people have enormous difficulty getting a job just because they have a physical disability of some kind.

We don’t know how to deal with autistic people, for example; we don’t know how to act with a intellectual disabled person, or somebody with psychological problems, or with a visual disability.  We feel awkward, we don’t know what to say or how to teach our children to behave.  The sidewalks aren’t designed to allow people whose mobility is restricted to get around freely.  Our cities and our entire society are completely hostile to all these people.

Know why?

Because, until recently, all these folks were locked up, hidden from view. Now you’re going to say: “Come on, that was a long time ago!  It’s different today!”

Did you know that, in 1911 in the USA, they passed a law that said basically that disabled individuals were not allowed to be out in public?  That it was immoral?  A person with Down Syndrome would be “offensive” to normal people if they dared to show themselves or tried to have a normal life.

So then you’ll say “Well, but that was in the USA, of course it was like that there!” But you’d be wrong, because this was the mentality of everybody in those days and likely all over, even here (in Brazil).  That law was overturned only in 1973 – that is, our parents and grandparents were raised and educated in a society that held strongly to these ideas.  They passed that on to us, and we in turn are educating the next generation. (Andrew Solomon. “Far From The Tree”)

Back then, people were called “mongoloids” or “mentally retarded” and in fact this latter term is still what is used by the medical profession – according to a specialist, that’s what my little girl has: mental retardation.  There’s even a diagnostic code for it.

Today, I see it as my duty to be deeply resolute and empowered by this human condition of disability, so that I can teach my little girl that she is disabled and it is nothing to be ashamed of.  That she has some needs that are different from many children her age, but that, at the same time, she also has the same needs they have: she needs to be loved, to learn, to go to school; she needs to have friends, to play, to go to parks and playgrounds; and all the other things children her age need.

So let’s try a bit more to have some dialogue, to hear what these disabled people have to tell us.

My dream is to see all kinds of disabled folks all over the city (“occupying the city” – a current subject in the Sao Paulo megalopolis). How many disabled people do you see in your everyday life?  At the bakery, at the bank, at the gym, at the movies, on the subway?  I dream of a day when my daughter can say goodbye to me at the door and go off to the bus stop by herself, just like people with visual disabilities, or in wheelchairs, or with autism. A city that’s more accessible, more inclusive.  Utopia?  But without this, how will we even begin to undo what’s been done to these people?

*A special thanks to Mary Leigh Burke, a dear friend of my family, who lives in Oregon but  lived with my grandparents in Brazil long ago. If it wasn’t for her  this whole text wouldn’t be translated.

Crianças com necessidades especiais ou deficientes?

 

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Umas das palavras mais atuais é “empoderamento”. Falamos de empoderamento racial, de orientação sexual e de identidade de gênero, mas vou falar de um outro agora, do empoderamento das pessoas com deficiência.

Sim, deficientes, e não pessoas com necessidades especiais, excepcionais, anjos azuis, ou qualquer outro eufemismo que a sociedade gosta usar para descrevê-los.

Eu mesma, confesso, tenho muita dificuldade em dizer que minha filha tem uma deficiência, deficiência intelectual, de causa genética. Para mim, é muito mais confortável falar que “tenho uma filha com necessidades especiais”. Isso é menos duro para o meu coração, mas é também uma barreira para o enfrentamento e apropriação dessa condição, que é dela, mas é tão minha. Ser deficiente intelectual não é ter falta de inteligência, é ter um outro jeito de aprender, em um outro ritmo.

Uma pessoa deficiente visual aprende a enxergar com os outros sentidos. Uma pessoa sem membros superiores aprende a usar os pés para desempenhar funções de maneira espetacular. As pessoas com deficiência intelectual também têm que desenvolver suas estratégias para se adaptarem ao mundo, e, quando essa chance lhes é dada, conseguem surpreender.

O que os grupos de pessoas com deficiências buscam é o reconhecimento de suas particularidades tais como são, sem maquiagem. Aceitação, portanto, empoderamento. Alguns deles, como os de Síndrome de Down, que são muito organizados, têm feito muitas campanhas para mostrar que merecem respeito, oportunidades e reconhecimento. Tal como são.

Daí você diz que concorda com tudo isso, sim, todos nós somos diferentes e merecemos respeito. Porém, na prática, essa ideia é esvaziada pela percepção que todos nós temos da tal “normalidade”. O que define você e todos nós moralmente são nossas ideias do que é normal, então, normal é casamento entre homens e mulheres, normal é menina usar rosa, normal é deficiente na escola especial, normal é deficiente ser visto como neutro (“café com leite”, sabe?), normal é deficiente ser para sempre dependente, normal é entrar em um escritório e não encontrar pessoas com qualquer tipo de deficiência. Muitas pessoas habilidosas têm enorme dificuldade de se colocarem no mercado de trabalho, porque têm alguma deficiência física.

Não sabemos lidar com pessoas autistas, por exemplo, não sabemos como agir com uma pessoa deficiente intelectual, ou uma pessoa com transtornos psicológicos, ou com deficiência visual. Ficamos sem graça, não sabemos o que dizer e como ensinar os nossos filhos como agir. As ruas não permitem que pessoas com restrição de mobilidade possam circular livremente. A cidade e a sociedade são completamente hostis com todas essas pessoas.

Sabe por quê?

Porque, até pouco tempo, todas essas pessoas ficavam trancafiadas em casa, dentro de intuições, escondidas de todos nós. Mas daí você vai falar: “Nossa, mas isso foi muito tempo atrás! Hoje está tudo diferente!”.

Você sabia que, em 1911, nos EUA, foi assinada uma lei que dizia, basicamente, que todas as pessoas diferentes não podiam circular livremente pelas ruas? Isso era amoral. Uma pessoa com Síndrome de Down estaria “ofendendo”, digamos assim, as pessoas normais se ousasse andar pelas ruas e tentasse ter uma vida normal.

Então, vc vai dizer: “Ah, mas isso era nos EUA, só podia ser lá!”. Não se engane, essa era a mentalidade das pessoas na época, provavelmente, no mundo todo, aqui, inclusive. Essa lei só foi revogada em 1973, ou seja, as pessoas foram criadas e educadas dentro de uma sociedade que carregava fortemente esses ideais, essas pessoas, que hoje são nossos avós e pais, nos educaram, e nós, por sua vez, estamos aqui educando as novas gerações.

Naquela época, as pessoas eram chamadas de mongoloides e retardadas, sendo que essa última ainda consta no vocabulário técnico médico, ou seja, segundo laudo dado por especialista, minha filha tem retardo mental, sim, retardo mental (existe até um CID para isso).

Eu, hoje, me vejo no dever de me empoderar do “ser” deficiente, sim, empoderamento da deficiência. É meu dever estar mais do que bem resolvida e empoderada dessa condição humana, para, então, ensinar para minha filha que ela é deficiente e não há qualquer vergonha nisso. Que ela tem algumas necessidades diferentes de muitas crianças da idade dela, mas que, ainda assim, ela também tem as mesmas necessidades delas. Precisa de amor, aprender, ter acesso à escola, precisa de amigos, brincar, de frequentar os parques e parquinhos e de todas as outras coisas que as crianças dessa idade precisam.

Então, vamos nos esforçar um pouco mais para o diálogo, para ouvir o que essas pessoas têm para nos mostrar.

Meu sonho é ver pessoas com as mais diferentes deficiências ocupando a cidade. Aliás, outro tema do momento, “ocupação da cidade”. Quantas pessoas com deficiências você encontra no seu dia-a-dia? Na padaria, no banco, na academia, no cinema, pegando metrô? Sonho com o dia em que minha filha vai se despedir de mim na porta de casa e vai sozinha para o ponto de ônibus, assim como deficientes visuais, cadeirantes e autistas. Uma cidade mais acessível e inclusiva. Bem utópico, não? Mas, sem isso, como vamos iniciar o processo de desfazer o que foi feito até hoje?

Quer saber mais sobre esse assunto?

“A dificuldade de diagnosticar a deficiência mental tem levado a uma série de revisões do seu conceito. A medida do coeficiente de inteligência (QI), por exemplo, foi utilizada durante muitos anos como parâmetro de definição dos casos. O próprio CID 10 (Código Internacional de Doenças, desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde), ao especificar o Retardo Mental (F70-79), propõe uma definição ainda baseada no coeficiente de inteligência, classificando-o entre leve, moderado e profundo, conforme o comprometimento. Também inclui vários outros sintomas de manifestações dessa deficiência, como: a […] ,dificuldade do aprendizado e comprometimento do comportamento, o que coincide com outros diagnósticos de áreas diferentes. 

O diagnóstico da deficiência mental não se esclarece por supostas categorias e tipos de inteligência. Teorias psicológicas desenvolvimentistas, como as de caráter sociológico, antropológico têm posições assumidas diante da deficiência mental, mas ainda assim não se conseguiu fechar um conceito único que dê conta dessa intrincada condição. A grande dificuldade de conceituar essa deficiência trouxe conseqüências indeléveis na maneira de lidarmos com ela e com quem a possui. O medo da diferença e do desconhecido é responsável, em grande parte, pela discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência, mas principalmente por aquelas com deficiência mental.”

 (Atendimento Educacional Especializado em Deficiência Mental. SEESP / SEED / MEC Brasília/DF – 2007)

“Há tempos que defeituoso é um adjetivo considerado muito carregado pelo discurso liberal, mas os termos médicos que o substituíram — “doença”, “síndrome”, “condição” — podem ser quase tão pejorativos à sua maneira discreta. Muitas vezes usamos o termo “doença” para depreciar um modo de ser, e “identidade” para validar essa mesma maneira de ser. Trata-se de uma falsa dicotomia. […] Muitas condições são tanto doença como identidade, mas só podemos ver uma se obscurecermos a outra. A política da identidade refuta a ideia de doença, enquanto a medicina ludibria a identidade. Ambas saem diminuídas com essa estreiteza.”    (Solomon, pag. 15)

“ […] As sociedades pós-industriais criaram instituições benevolentes para os deficientes, que muitas vezes eram levados para longe de casa ao primeiro sinal de anomalia. Essa tendência desumanizante montou o cenário para a eugenia. Hitler matou mais de 270 mil pessoas com deficiência, sob o pretexto de que eram “travestis da forma e do espírito humanos”. A presunção de que a deficiência podia ser extirpada era corrente em todo o mundo. Leis que permitiam a esterilização involuntária e o aborto foram aprovadas na Finlândia, Dinamarca, Suíça e Japão, bem como em 25 estados norte-americanos. Em 1958, mais de 60 mil americanos já haviam sido castrados à força. Em 1911, Chicago aprovou uma lei que decretava: “Nenhuma pessoa que esteja doente, aleijada, mutilada ou de alguma forma deformada, de modo a ser um objeto de má aparência ou repugnante nas vias públicas ou outros locais públicos da cidade, deve neles se expor à visão pública”. Essa lei só foi revogada em 1973. […]

O movimento pelos direitos dos deficientes procura, no nível mais básico, encontrar um lugar para a diferença, em vez de apagá-la. Um dos seus sucessos mais marcantes é entender que os interesses dos filhos, dos pais e da sociedade não são necessariamente coincidentes, e que os filhos são os menos capazes de se defender. Muitas pessoas com profundas diferenças sustentam que mesmo asilos,hospitais e residências bem administrados são análogos ao tratamento dos afro-americanos submetidos às leis segregacionistas outrora vigentes nos estados sulistas americanos. […]

Apesar desses desafios persistentes, o movimento pelos direitos dos deficientes fez progressos notáveis. A Lei de Reabilitação de 1973, aprovada pelo Congresso americano contra o veto do presidente Nixon, proibiu a discriminação contra pessoas com deficiência em qualquer programa financiado pelo governo federal. […] Em 2009, na abertura dos Jogos Mundiais Olímpicos Especiais, o vice-presidente Joe Biden declarou que a defesa das necessidades especiais era um “movimento de direitos civis” e anunciou o novo cargo de assistente especial do presidente para a política relativa à deficiência. […]

 O multiculturalismo rejeita a visão da década de 1950 de um mundo em que todos estão subordinados à americanidade uniforme, e opta por outra em que todos habitam suas próprias particularidades valiosas. Em sua obra clássica Estigma, Erving Goffman sustenta que a identidade se forma quando as pessoas se orgulham daquilo que as tornou marginal, possibilitando assim alcançar autenticidade pessoal e credibilidade política.” (Solomon, pag 41)

(Longe da Árvore: pais, filhos e a busca da identidade / Andrew Solomon. Companhia das Letras 2013)

 

*Meus agradecimentos especiais para Gabrielle Berton e Júlia Souto da Escola Estilo de Aprender, pela revisão do texto e pelo carinho!

Quando as crianças com necessidades especiais terão tempo para ser criança?

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Um dos assuntos mais abordados sobre a infância ultimamente é a importância do brincar, do tempo para ser criança, para fazer nada, sentir o tempo,  criar ou só olhar o céu, a rua, as árvores, os outros, estar ao ar livre (!!!!), estar com outras crianças…

Tempo para ser dono do seu tempo, para não ter ninguém dirigindo suas ações, ser criador e não executor.

Muito se fala sobre a agenda cheia das crianças. Com 4 anos, além do período na escola, eles fazem várias atividades extras. Agenda de executivo na primeira infância, sabe? Muitas famílias preocupadas com isso, priorizam uma ou outra atividade extra. Assim, cada uma escolhe o que acha importante para esse momento da vida e procuram deixar uma parte do tempo da criança  livre. Afinal, eles terão muitos anos pela frente para desenvolverem certas habilidades e podem esperar um pouco mais.

E quando você tem um filho com necessidades especiais?

No meu sonho de mãe ideal, aquela que eu sonhava ser antes da minha filha nascer, eu sempre tive a convicção de que, além de escolher uma escola que respeitasse o tempo da infância, minha filha teria todo o tempo para si, para olhar o céu, para fazer comidinha de areia…

E as aulas extras? Como eu sou professora de inglês da Ed Infantil, aos 3 anos ela poderia começar comigo, mas, e as outras atividades? Natação de repente? De preferência ao lado de casa, para ir a pé e nada mais.

Mas a verdade é que estou me deparando com uma outra realidade.

Eu não posso simplesmente escolher uma ou outra atividade. Minha filha precisa fazer fisioterapia, terapia ocupacional e fono terapia. Não posso dizer, “vai fazer fono e depois mais para frente faz fisioterapia”. Não posso. Ela precisa de todas elas. Precisa. O ideal seria que fizesse duas vezes por semana cada uma delas. É o que as terapeutas dizem. Daí seriam 6 dias na semana. Imagine, além de ir para a escola 5 dias por semana, num período de 4 a 5 horas, fazer atividades extras 6 dias na semana?

Bem, a verdade é que ela faz terapias 3 vezes por semana, uma de cada, e mesmo assim é bastante. Também temos consultas médicas frequentes com os especialistas que nos acompanham. De tempos em tempos, além dos 3 dias de terapia, encaixamos na semana uma consulta médica. Exames esporádicos. Aos sábados, natação. Sem contar o tempo de ir e vir no trânsito da cidade de São Paulo.Olha aí a tal da agenda de executivo!!

Que vida é essa que estou dando para minha filha? Uma vida dentro do carro? Aos 2 e 3 anos de idade, tem que acordar, tomar café. “Vamos! Temos que sair!” Vai para terapia, volta da terapia, almoça, vai para a escola, volta da escola. Entra e sai. Hora marcada.

Meu coração fica apertado quando paro para refletir sobre tudo isso. As terapias são fundamentais para minha filha ter uma vida plena (sem dúvida!). Porém, uma vida plena vai além dessa agenda toda de hora marcada na primeira infância!

Isso porque no nosso caso não vivemos o pior dos cenários. Imagine aquelas crianças que têm outras complicações, que precisam ser hospitalizadas com frequência, que sofrem com problemas de mobilidade.

Então a minha pergunta é: qual o horário que as crianças especiais têm para serem crianças? Que tipos de experiências estamos oferecendo para elas? Quanto tempo ao ar livre e com outras crianças elas estão tendo? Existe espaço para elas aprenderem, dentro de suas limitações, o que é ser criativo?

Ainda não sei se vou ser bem sucedida em resolver essas questões. Daí vem a arte do otimismo e da criatividade, que devem ser praticados diariamente, procurando soluções e equilíbrio. De repente seria tentando ter mais qualidade de vida, aproveitando as coisas simples…

P.S.: A natação é uma paixão da Maitê e nós conseguimos ir a pé! (ufa!)